domingo, 3 de junho de 2012

Processo de territorialização: autonomia e tradições contadas por moradores da Comunidade Linharinho


Nos períodos do Brasil colônia e império, os traficantes de africanos escravizados construíram um porto em São Mateus (ES), onde renegociavam a vida dessas pessoas. Ao chegarem à região, esses africanos e seus descendentes resistiram ao processo de escravização, por meio de fugas e de negociações de suas liberdades. Estas formas de resistência permitiram a organização social, política e econômica de diversos agrupamentos, a  partir  de  uma  lógica  da  autonomia,  dando início, assim, às comunidades de quilombos num grande território que ficou conhecido como Sapê do Norte.

“Então, todos eles (os senhores) eram barões e os negros tinham que se aquilombá pra não trabalhar como escravo. (...) Ficou com a terra pra trabalhar pra sobrevivência, porque aqui ficaram e até hoje continua com nosso povo. “ Miúda

As lideranças de Linharinho afirmam que seus ancestrais pertenciam aos povos africanos de tradição nagô,dos quais herdaram elementos culturais relacionados à língua iorubá e à religião do candomblé. 

“A religião daqui era o que? Era candomblé, era ladainha, era ofício de Nossa Senhora. (...). Tudo coisa de povo africano. (...) Aqui no Sapê do Norte, os negros tinham dois tipos de trabalho religioso: o candomblé e o camocite. (...). Depois, de tanto ser perseguidos por autoridades, polícia e padres, esses negros que vieram da África, esses nagores (nagôs) africanos, tiveram que colocar outros nomes de religião: Mesa de Santa Bárbara, Mesa de Santa Maria e Mesa de São Cosme e Damião. Nesse Sapê do Norte, o povo tinha essas três mesas como tradição. Foi de, me parece, de 1886 pra lá, eles só viviam nessa religião. Foi nas proximidades de 1980 que os padres começaram a perturbar, o Bispo de Vitória mandava os padres vir a esse povo, quinze dias nesse Sapê do Norte, pra ver como estava a religião desse povo. E aqui eu acho que ficou a família da Aurora Deolinda da Conceição, minha tia, minha mãe também, que eram entendidas dessas coisas. O Joaquim Felipe da Vitória (bisavô de Miúda) também era da mesa de Santa Bárbara que tinha aqui. (...) Hoje, o povo que sabia mesmo da religião foi tudo embora. A gente ainda sabe um pouquinho da coisa do ritual da Mesa, mas tudo bem. A gente quer de volta tudo isso.” Miúda

Associado às atividades religiosas tem-se o uso de raízes, plantas e ervas medicinais. Os ancestrais extraíam o azeite da palmeira do dendê, além do azeite de baga, nos quais acreditavam encontrar propriedades medicinais para a cura de diversas doenças. O azeite de dendê era usado  também na  culinária e para banhar  as pedras do  assento de  Santa Bárbara. O  azeite de baga, além de ser tomado a cada seis meses como remédio, era usado como combustível nas lamparinas e candeias para iluminar a escuridão da noite. 
O processo de expropriação das terras dos quilombolas do Sapê do Norte pela Aracruz, segundo os relatos locais, contou também com a cumplicidade de instâncias do Governo do Estado do Espírito Santo, sobretudo com a participação do IDAF.

“O significado de nossas vidas pela terra, é que a gente quer que volte a cultura, que volte no nosso território, que possa dar mais vida para nossas crianças, nossos netos, pra não acontecer que nem os nossos que saíram.” Vermindo

“Antes da Aracruz chegar era bom. Depois que a Aracruz chegou, ficou de jeito de a gente não ter um pau de lenha pra queimar. Eu pra queimar um pau de lenha, esperava cair um galhinho lá de cima no chão, pegava um galhinho seco lá no chão pra queimar escondido.(...) Porco, nós criava era muito, depois eles proibiram, não queriam que botasse porco no local... Aí foi acabando, foi acabando e acabou tudo.” Dona Domingas


Conforme o relato dos moradores, além de contar com o apoio e a conivência das polícias civil e militar nas ações de vigilância e violência contra as comunidades dos quilombos do Sapê do Norte, a Aracruz Celulose tem uma vigilância armada – a VISEL – para patrulhar os movimentos e solicitar as prisões de membros dessas comunidades, caso sejam encontrados entre os eucaliptos. Há cerca de três anos, segundo uma moradora, seus irmãos estavam trabalhando em suas lavouras de café e, repentinamente, chegaram os agentes da Visel acusando um deles de ter cortado uma árvore de eucaliptos e exigiam que ele fosse até o local. Segundo dizem, a Visel tem a prática de conduzir os acusados até o local e lá fotografar os mesmos próximos às árvores cortadas para incriminá-los e solicitar a sua prisão. O morador se recusou a ir até o local da árvore cortada, ai firmando que não havia cortado a mesma e que ele estava trabalhando em sua lavoura. Cerca de duas horas depois, chegaram dois policiais militares para levar a força o membro da comunidade até o local da árvore cortada para forjarem uma prova por meio da fotografia e incriminá-lo. O trabalhador novamente se recusou a ir. A partir de então houve luta corporal entre ele e os policiais que tentavam algemá-lo. Diante dos gritos do mesmo, diversos integrantes da comunidade correram ao local para socorrê-lo, havendo ali pressões das lideranças sobre os policiais, pois queriam saber o motivo da prisão e uma das lideranças alegou que não havia fundamentos legais para a invasão da propriedade de uma comunidade de quilombo para prendê-lo sem provas. Sem justificativas, os policiais fugiram. A partir de então, não voltaram a incomodar a comunidade.
Das situações de conflito vividas pelas comunidades podemos destacar: ameaças, exibição de armas e tiros pelos agentes da Visel para intimidar moradores que lutam por seus direitos; prisões ilegais de moradores; embargo aos usos de lenha nos fornos de carvão; e, por fim, uso de violência para tomar a lenha e as ferramentas de trabalho, sobretudo se for encontradas com mulheres.Entre as estratégias empregadas pela Aracruz para, aos poucos, minar a resistência dos quilombolas e expulsá-los da terra está aquela da poluição venenosa da água consumida por eles. Entre esses venenos, os moradores destacam os herbicidas (que causaram cegueiras em pessoas que trabalhavam para a empresa batendo o veneno nos eucaliptos) e o vinhoto (lançado no rio Angelim pela DISA) que torna a água imprópria para o consumo e mata os peixes que fariam parte da dieta alimentar local. Diante do problema da contaminação e desaparecimento da água, a comunidade reivindicou do Governo do Espírito Santo o tratamento da água a ser consumida, sendo a reivindicação atendida. Segundo Dona Domingas, o rio São Domingos que abastecia a comunidade secou e dentro de seu leito tiveram que perfurar uma cacimba para encontrar água para não morrerem de sede. Afirma que depois que a comunidade passou a reivindicar seus direitos à terra, as máquinas da Prefeitura foram ao local e arrancaram todo o encanamento que fazia a distribuição da água para as casas e eles tiveram que voltar a tomar a água da cacimba,mas, para ser consumida e usada, esta água, de tão suja, precisa ser coada. Dizem que com a expulsão de antigos moradores da terra, desapareceram parte de suas tradições (ladainhas, festas, bailes) e os nomes de identificação dos lugares, como os Sítios e Córregos, que nomeavam os lugares, e que foram todos submersos aos eucaliptais. Segundo Dona Domingas, entre Linharinho e Braço do Rio desapareceram os povoados, onde viveram seus ancestrais, que assim eram nomeados: Córrego Dantas, Córrego do Meio, Córrego das Pedras e Córrego Seco.

Relatos extraído do Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil. ( História do povo da Comunidade quilombola do Sapê do Norte - Conceição da Barra - ES )
Respeitosamente pelo uso das citações enriquecendo nosso Blog agradecimento aos companheiros e amigos queridos: Vermindo, Miúda,Dona Domingas.


Postado por Cbar02: Anay Sá, Dôra Freitas, Lídia Oliveira, Maria Machado, Tatiane Caulyt, Vitoria Vasconcelos. 





























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